Abaixo segue entrevista realizada pelo escritor e jornalista Marcelo Csettkey com Antônio Donato Nobre, pesquisador e cientista do Centro
de Ciência do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe), sobre um dos grandes problemas de nossa atualidade: a falta de chuvas na região sudeste do país e sua relação direta com o desmatamento e consequente destruição que vem ocorrendo em nossa floresta amazônica.
A entrevista faz parte do livro "A floresta amazônica garante nossas vidas", de Marcelo Csettkey.
JORNAL DE DEBATES > ENTREVISTA / ANTONIO DONATO NOBRE
A água nossa de cada dia
Há uma ficção que traduz com semelhança a situação que ora vivemos. Um
cientista anteviu uma catástrofe climática inevitável no filme O dia depois de amanhã.
Os políticos o ignoraram, até que o pior previsto aconteceu. A
diferença entre a realidade e a ficção se dá por dois detalhes
importantes: no filme, o cientista elabora uma teoria no calor do
momento, na iminência do fato ocorrer. Na vida real, nossa crise hídrica
foi antevista e anunciada pelo cientista Antonio Donato Nobre (PhD,
pesquisador do MCTi/CCST-Inpe e MCTi/Inpa) com bastante antecedência.
Sua previsão, feita há dez anos, está registrada em uma reportagem da
revista Veja intitulada “O ano em que a Amazônia começou a morrer”, publicada no dia 28 de dezembro de 2005. Ali, Nobre afirmava:
“Teríamos uma grande queda de pluviosidade na Região Sudeste,
comprometendo a Bacia do Prata e consequentemente, grande parte da
geração de energia do país.”
Exatamente o que está acontecendo, basta acompanhar as notícias. Então,
o que será da Região Sudeste se os “volumes mortos” morrerem? Os
políticos até agora não quiseram ouvir o alerta e a mídia não lhe deu a
importância merecida. Políticos e mídia, ao que parece, preferem assumir
o risco da ocorrência, omitindo-se ou tergiversando. No filme, houve,
por parte do cientista, a constatação da inevitabilidade da catástrofe!
Na realidade, ainda há esperança de gerar-se uma inflexão no curso dessa
inevitabilidade. É por esta esperança que entrevisto o cientista real.
Partilho a preocupação de todos com a seca que atinge o Sudeste do
Brasil, pondo em risco nossas bacias hidrográficas, nossa energia
elétrica, nossa água e comida. Tudo o que está acontecendo pode não ser
aleatório, mas sim resultado também do desmatamento irresponsável que
ocorre diuturnamente na Amazônia e sua relação causal, e não casual, com
a diminuição da umidade vinda da floresta para o Sudeste do país nos
“rios aéreos” – por uma singularidade que envolve a Cordilheira dos
Andes.
O relatório de avaliação científica feito por Nobre, “O Futuro Climático da Amazônia“,
é contundente; porém, como dizia Shakespeare, “para males desesperados
só remédios enérgicos ou remédio nenhum”. Nobre exorta a população, pois
só combatendo a ignorância por meio da mobilização popular poderá ser
estancada a grande perda anunciada.
“A única possibilidade é restaurar as florestas”
Marcelo Csettkey - O que de fato acontece que põe em risco o abastecimento de água e
energia elétrica nas cidades e capitais do Sudeste? Que singularidade
está sendo ameaçada – que difere o Sudeste do país dos desertos na mesma
linha entre os trópicos de Câncer ou Capricórnio – e por que motivo os
“volumes mortos” tendem a morrer definitivamente?
Antonio Donato Nobre – Os sintomas do desarranjo
climático estão aí. Como na crônica da morte anunciada, experimentamos
já agora muito do que fora previsto desde mais de 20 anos por vários
estudos feitos na Amazônia. E da observação desta nova realidade
chegamos à conclusão cientifica: remover árvores leva a um clima
inóspito. Com a destruição continuada das florestas é garantido o
destino de clima não amigável, especialmente sob o estresse aumentado
das mudanças climáticas globais. Éramos felizes e não sabíamos, pois a
Amazônia foi e, apesar do desmatamento, ainda é, grande provedora de
serviços ao clima. Sabemos agora que a região centro sul da América do
Sul recebe a maior parte de suas chuvas a partir de vapor bombeado pela
grande floresta. Tal explicação permite compreender por que essa rica
região produtiva não é deserto, como são outras regiões na mesma
latitude. O clima é variável, assim é provável que, apesar destes anos
alarmantemente secos, ainda voltem as chuvas. Não sabemos exatamente
como essa transição para uma aridez possa se dar. Mas sabemos que,
quando vier, toda a região se verá permanentemente privada do elo mais
importante do ciclo de água doce em terra: o suprimento pelas chuvas.
2014 já é um exemplo do que poderemos esperar.
M.C. - O que provoca o surgimento de uma enorme massa de ar seco, um “paquiderme atmosférico”, uma espécie de Jabba the Hutt“sentado”
em cima da Região Sudeste? O que poderia ser feito para diluir essa
massa de ar seco que insiste em impedir que as nuvens carregadas de
água, vindas da Amazônia se espraiem pela Região Sudeste?
A.D.N. – O grupo no qual atuo, liderado pelos físicos
russos Victor Gorshkov e Anastassia Makarieva, explica o fenômeno como
decorrência direta da remoção de florestas (também na própria região
Sudeste), o que impede a convergência de umidade do oceano para o
interior do continente, permitindo a estacionamento dessa massa de ar
quente e seco, típica de deserto. Tem também a alça de ar da circulação
de Hadley, aquela do ar ascendendo úmido no entorno do equador e
baixando seco nas latitudes médias – a explicação clássica para o
cinturão de desertos nestas latitudes – que poderia estar recebendo
vitamina energética do próprio aquecimento global. Liguemos as pontas:
tire as florestas e os efeitos da circulação alterada pelo aquecimento
global têm campo livre para atuar e eventualmente ali se fixar. Se essa
nova circulação e seu clima associado vieram para ficar, se já não for
tarde demais, a única possibilidade é recolocar na paisagem o
elemento-chave para um clima amigo: restaurar as florestas.
“A floresta amazônica tem papel importantíssimo na regulação climática”
M.C.- Quais as medidas mais eficientes para se impedir a catástrofe climática anunciada?
A.D.N. – Nesta altura e a curto prazo não parece
provável ou mesmo possível impedirmos a calamidade climática que nos
bate a porta. Mas creio que podemos, se fizermos um genuíno esforço de
guerra na restauração extensiva das florestas, atenuar muito os efeitos e
quiçá logremos recuperar o espetacular sistema de condicionamento
climático que operava no “berço esplêndido”.
M.C. - No filme supracitado, os políticos são os últimos a reconhecer a
situação emergencial. Na realidade, ao que tudo indica, o governo Dilma
está na contramão da História, pois negou a assinatura da carta de
intenções pelo desmatamento zero até 2030, e replantio de árvores, na
Declaração de Nova York sobre Florestas, em setembro de 2014, na reunião
do Clima em Nova York – documento assinado por 29 países, incluindo
Estados Unidos, Canadá e vários países da União Europeia. Que interesse
segundo sua opinião, motivou a negativa?
A.D.N. – Não me parece útil presumir os interesses que
governam o Brasil. Entretanto, o que parece evidente é que tais ações
(ou falta delas) são instruídas pelo desconhecimento da ciência. Tenho a
esperança de que governantes responsáveis e compromissados com a sorte
da sociedade se apropriarão dos fatos científicos e reformarão as
posturas oficiais. Em vista também dos graves fatos climáticos, o Brasil
deveria ocupar a liderança mundial em uma luta que resultasse em
curtíssimo prazo no estancamento do desmatamento, na abolição do fogo,
fumaça e fuligem e no início de um amplo esforço de restauração
florestal.
M.C. - Como a destruição da Floresta Amazônica pode interferir no clima
mundial? O que irá acontecer se a grande floresta se transformar em uma
savana, ou algo pior, em um deserto?
A.D.N. – Simulando a morte e desaparecimento da
floresta, alguns estudos estimaram o efeito da liberação massiva do
carbono estocado na Amazônia sobre o clima e os prognósticos que geraram
indicam sério agravamento do aquecimento global. Outros estudos
avaliaram o efeito do desaparecimento da floresta sobre a circulação
atmosférica, transporte de vapor e mesmo no balanço de energia, e
indicaram que o clima próximo e distante pode ser impactado via
perturbação no funcionamento dos oceanos. A grande floresta amazônica,
descobriu-se ter papel importantíssimo na regulação climática local,
regional e mesmo global. Eliminá-la será uma catástrofe impensável para a
humanidade.
“Estamos matando a galinha dos ovos de ouro”
M.C. - De que forma pode haver cooperação internacional para frear o
desmatamento da Amazônia? Que atitude mundial fará com que haja uma
interrupção dessa catástrofe climática já anunciada? O senhor acredita
que este tema possa estar inserido na pauta da Conferência sobre
Mudanças Climáticas (COP 21), em Paris, em dezembro de 2015? O que fazer
para que o mundo tome ciência da gravidade de destruir-se a maior
floresta tropical contínua do planeta?
A.D.N. – O desmatamento na Amazônia precisa ser zerado
a qualquer custo. E a tarefa compete primeiramente aos países
amazônicos porque a eles foi dado o privilégio de possuir tal riqueza.
Os outros países podem colaborar neste esforço através de ações ao seu
alcance, especialmente deixar de consumir produtos oriundos da
destruição da floresta, como toras e madeira serrada, grãos e carnes
produzidos em áreas de onde se removeram florestas, entre outros. Podem
também apoiar a adoção de soluções alternativas à construção de
hidrelétricas nos rios amazônicos, como facilitar o acesso a tecnologias
de energia solar. Mas o essencial é que os países amazônicos assumam a
liderança neste grande esforço, que precisa se estender a todos os
países detentores de florestas e também aos que precisam reconstruir
suas florestas originais. Essa grande ação na proteção e restauração de
florestas tem ótima oportunidade de ser encampada pelas Nações Unidas,
mas é preciso fazer um grande trabalho de conscientização da humanidade,
que então demandará dos governos o fim da procrastinação.
M.C. - Seria a demanda crescente por carne bovina, no mercado nacional e
internacional, elemento catalisador do desmatamento da Floresta
Amazônica, transformando grandes áreas do riquíssimo bioma em pastagens?
O consumo de carne bovina oriunda da Amazônia poderia ser associado à
crise hídrica no Sudeste? É plausível este pensamento?
A.D.N. – Se uma maior parcela do desmatamento bruto é
atribuível diretamente à pecuária bovina e a ampliação desta atividade
somente existe devido ao consumo crescente de carne no mundo, decorre
que os efeitos no clima do desmatamento estão intimamente associados ao
hábito de consumir carne.
M.C. - Em cinco séculos foram destruídos biomas exuberantes que garantiam o
clima paradisíaco que encantou Pero Vaz de Caminha. A devastação
sistemática de fauna e flora, apesar de enorme, alterou pouco o clima do
país. Que singularidade beneficiou o Brasil até 40 anos atrás? E o que
provocou a mudança drástica?
A.D.N. – A grande floresta amazônica, como sabemos
hoje, exporta serviços ao clima para uma maior parte da América do Sul. A
destruição da Mata Atlântica certamente teve efeito ruim sobre o clima
local, especialmente na perda da regulação hidrológica fina e da
capacidade de atenuação de extremos climáticos. Mas nos séculos passados
essas regiões continuaram recebendo umidade suficiente da Amazônia para
não terem se aridificado. A destruição sistemática e acelerada da
floresta amazônica nos últimos 40 anos começa a destroçar a proteção que
oferecia. Estamos matando a galinha dos ovos de ouro.
“Ainda temos a oportunidade de evitar o pior”
M.C. - Quanto o senhor calcula que a destruição de árvores tenha causado a
diminuição dos “rios aéreos” que, tudo indica, tem provocado a crise
hídrica crescente? O quanto de espaço foi perdido no desmatamento da
Amazônia em quatro décadas?
A.D.N. – A crise hídrica atual parece resultar da
atuação de vários fatores. Aquecimento global, mudança da circulação
atmosférica, impedimento da progressão da umidade amazônica e
enfraquecimento dos fluxos de vapor nos rios aéreos são alguns destes
fatores. Quanto e de que forma exatamente contribui cada um deles, ainda
não sabemos. Mas sabemos que todos estes fatores têm sido impactados
por atividade humana. O desmatamento é a face mais visível da tragédia:
somente de corte raso foram três estados de São Paulo (~763 mil km2). Degradação florestal, uma área maior ainda (~1,2 milhão de km2).
Somadas, estas áreas de impacto já ocupam mais de 47% da área original
de floresta na Amazônia brasileira. Tanta destruição já está produzindo
impacto.
M.C. - Qual a importância das árvores na formação das nuvens? De que forma
as árvores são vitais para se gerarem as chuvas de que tanto precisamos
para viver?
A.D.N. – As árvores transpiram grandes quantidades de
água bombeada do solo, o que resfria a superfície e fornece
matéria-prima principal para a formação de nuvens. Elas também emitem
compostos voláteis, os cheiros, que, como gases que se precipitam na
forma de poeira finíssima, atuam na nucleação de nuvens e promoção de
chuvas. Com a condensação do vapor fornecido pelas árvores, ocorre um
abaixamento da pressão na atmosfera sobre a floresta, o que determina a
sucção dos ares úmidos de sobre o oceano para dentro do continente.
M.C. - Há alguma possibilidade de tombar-se a Floresta Amazônica como
patrimônio da Humanidade, tentando impedir assim sua destruição pela
ignorância humana?
A.D.N. – Creio ser mais factível e prático empreender
esforços para eliminar a ignorância humana. Somente uma sociedade
consciente consegue fazer frente a interesses menores e destrutivos que
surgem e são defendidos por elites poderosas. O exemplo das
hidrelétricas na Amazônia é sintomático. Nos anos 80, depois de absurdos
como Balbina e outras represas, pensou-se que nunca mais voltariam a
cogitar novas obras deste tipo na Amazônia. Mas passaram-se décadas e o
lobby das hidrelétricas voltou à carga, desta vez recebendo suporte de
um governo oriundo de movimentos populares e até de parcela da sociedade
que passou a justificar a geração de energia para atender à crescente
demanda nacional. Até a proteção das reservas indígenas e outras áreas
de conservação inscrita em nossa carta magna estão sob ataque eficiente
dos interesses menores que dominam o Congresso. A meu ver, somente
tombar a floresta, como se faz com valores culturais reconhecidos, não
conseguirá barrar tais ataques.
M.C. - Sua mensagem para todos os que alimentam esperança, e possam
garantir o futuro climático do Brasil, protegendo a Amazônia – por nós e
pelas gerações que virão.
A.D.N. – Absorva e entenda a mensagem de alerta;
aproprie-se do saber sobre a floresta e o clima; explique a seu modo
para seu semelhante da importância das florestas; ensine a seus filhos,
tios e avós; deixe de consumir produtos que colocam a floresta em risco;
plante árvores; substitua seu chuveiro por aquecimento solar; demande
de seus representantes e governantes atitudes responsáveis com o
interesse da sociedade. E alegre-se que ainda temos essa oportunidade de
evitar o pior – se lutarmos com todas nossas forças!
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Marcelo Csettkey é jornalista, escritor e artista plástico
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