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REALIZAÇÃO DO SARAU ESPECIAL CAROLINA DE JESUS

Ontem (26) participei do Sarau Especial Carolina de Jesus, no Espaço Cultural Sophia. O evento é fruto de uma parceria entre a Editora Sophia e o Sarau Maldito, realizado pelo artista Rapha Ferreira.
Lemos trechos do livro "O Quarto de Despejo". Aproveitei o evento para divulgar as informações sobre Carolina que obtive em uma verdadeira aula que tive com o professor Isac Moura, meu confrade na ALACAF, durante o Sarau 15 Minutos que realizei com ele.
Foi muito bom participar! A vida de Carolina de Jesus pode parecer algo simples e já conhecido de grande parte dos brasileiros, porém sua narração dos fatos corriqueiros da favela e de seu dia a dia nos provoca profundas reflexões sobre o porquê de termos ainda tanta pobreza quando, ao mesmo tempo, temos o crescimento de tantas fortunas por parte de uma parcela mínima da sociedade.

Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento (MG) em 1914, e faleceu no interior de São Paulo, em 1977. O livro "O Quarto de Despejo" é de 1960.
Carolina cursou apenas dois anos do ensino fundamental. A patroa de sua mãe, identificando em Carolina uma curiosidade nata pela leitura, providenciou a sua matrícula no Colégio Allan Kardec, o primeiro colégio Espírita do Brasil.
Ela tinha dificuldades para arrumar emprego em casas de família em razão de uma ferida na perna que não cicatrizava. Além disso, não permanecia por muito tempo em um mesmo emprego porque ela tinha o costume de parar para ler, em meio às tarefas que deveria realizar. Por isso mudava muito de emprego. Após a morte da mãe, ela partiu para São Paulo, e foi viver na Favela Canindé, onde hoje é a marginal do Tietê, em São Paulo. Passou a trabalhar como catadora.
Carolina não quis se casar, pois não aceitava a submissão a um homem, coisa que, naquela época, era muito comum. Ela não gostava da favela, sonhava em sair de lá. Não se dava bem com os moradores da favela. Os vizinhos começaram a hostilizá-la por ela citá-los no livro, ela os citava nominalmente. E havia muitas brigas desse pessoal com os filhos dela, que eram também muito difíceis. Segundo ela, os filhos “reinavam”. 
Certa vez, o jornalista Audálio Dantas foi até o Canindé para fazer um documentário sobre a favela que, então, surgia em torno de um lixão. Quando ela soube da presença do jornalista,  saiu em sua procura, pois queria mostrar-lhe o barracão que construiu e contar a história de sua vida. Ela sonhava em ter seus escritos publicados. Seu barraco era extremamente pequeno mas, ainda assim, ela reservava um espaço para empilhar os livros e cadernos com anotações onde ela escrevia os registros diários de sua vida. Ela vendia tudo que catava, mas os livros eram poupados, ela os guardava em seu barracão para ler.
Antes de Carolina conhecer Audálio, ela já aparecia em jornais, revistas e rádios, por ser uma catadora escritora. Ela já havia decidido que queria ser escritora e escrever sobre a favela.
Quando Audálio se depara com todo aquele material, ele se interessa por publicá-lo e ela entrega-o em confiança. Ele leu e editou todo o material, mantendo o estilo próprio de Carolina e seu jeito próprio de falar. Audálio era um jovem jornalista, interessado em impulsionar a história de uma catadora com pouca escolaridade e que queria tornar-se escritora. Ele providenciou toda a produção desse material. Apostou todas as fichas, arriscou-se, pois poderia também não dar certo. Mas a aceitação foi enorme! A primeira tiragem, de 10 mil exemplares, vendeu em pouco mais de uma semana. A partir daí, vieram mais três tiragens de 100 mil exemplares cada uma, tendo chegado ao total de mais de 1 milhão de exemplares vendidos.
Carolina não tinha nenhuma noção sobre administração de grande montante de dinheiro. Ela passou de uma vida de extrema carência para uma vida de muita riqueza, em pouco tempo. Então ela não sabia administrar muito bem os gastos e Audálio alertava: cuidado, Carolina...vá com calma com os gastos... 
Ela agora morava na casa de um amigo, em Osasco, bairro de São Paulo. Ela queria comprar uma casa própria, e Audálio alertava-a de que ela precisava ir com cuidado nos gastos para conseguir comprar a casa que desejava.
As biografias de Carolina e de Audálio revelam que Audálio não foi desonesto com Carolina.  Ele, então, passou a administrar tudo, inclusive os gastos de Carolina. Mas, Carolina tinha o gênio difícil. Ela não tinha condições de circular sozinha no meio social da fama, e Audálio a ajudava em tudo isso. Ela mesma reconhecia as muitas vezes em que ela havia exagerado nas brigas com Audálio, pois ela não admitia ser controlada. Tiveram muitos conflitos.
A imprensa começou a divulgar que ela ganhava valores astronômicos, e formavam-se filas de pessoas pedindo ajuda em frente à casa dela, e ela queria ajudar a todos. Carolina era uma pessoa vaidosa, gastava muito com vestidos, colares e brincos, mas também muito generosa, capaz de distribuir dinheiro sem nenhum controle. Ela agora morava em sua casa própria no bairro de Santana, bairro de alto nível financeiro, em São Paulo. A vizinhança, que já não aceitava muito sua presença ali, incomodava-se ainda mais com a presença das filas de pedintes. Carolina queria publicar tudo que escrevia. Publicou um romance, gravou um LP, porém suas obras não tiveram a mesma aceitação que antes. O romance “Pedaços de Fome”  foi publicado em 1963. Em 1965, ela publicou “Provérbios”. Audálio sempre dizia a Carolina que o estilo marcante dela era produzir diários, que eles sim poderiam ainda fazer sucesso, mas ela teimava em publicar o que ela queria. E assim aconteceu, ela não teve mais o mesmo sucesso que antes. Ela achava que o sucesso de "O Quarto de Despejo" aconteceria com tudo o que ela publicasse, e Audálio explicava que não, que não seria assim. Mas ela discutia com ele e insistia. A mídia da época começou a sugestionar que Audálio estaria se beneficiando da fortuna de Carolina e ela acabou deixando-se levar pelas fofocas da mídia e acusou Audálio de estar de olho no seu dinheiro. Audálio, então, chegou no limite de sua tolerância, não aceitou essa acusação e rompeu definitivamente a relação profissional que tinha com Carolina. A partir dali, ela começa a decair, as editoras já não se interessavam tanto pelas obras dela, já não havia tanta procura por aqueles livros. A procura pelo romance que ela publicou foi muito pouca. Então ela vende a casa de Santana e vai morar em um pequeno sítio que conseguiu comprar em Parelheiros (SP). Com a saída de Audálio, ela acabou perdendo muito espaço. Ela reconhecia que Audálio havia feito muito por ela e que ela precisava muito dele. Chegou até a tentar contatá-lo novamente, porém sem sucesso. Ela volta, então, a catar material para reciclagem. Na época, um de seus filhos chegou a dizer que, a seu ver, a intenção dela ao voltar a catar papel, era trazer de volta a atenção da mídia, pois ela foi catar papel justamente no centro de São Paulo. Ela queria muito voltar a publicar, contudo ela não conseguia mais gerenciar, sozinha, a sua carreira. E, além disso, Audálio acabava filtrando muitos oportunistas que, com a saída dele, acabaram levando-a a perder ainda mais dinheiro. 
Carolina acaba falecendo em seu sítio, em 1977, em decorrência de uma crise de asma.
Boa parte dos escritores reconhecidos daquela época tinham, para com ela, um olhar desaprovador, como se ela fosse aqueles artistas que explodem de repente, vindo do nada, enquanto eles vinham consolidando a carreira pouco a pouco. Vários deles se recusaram a compartilhar eventos com Carolina. A Academia Brasileira de Letras - ABL também não via Carolina com bons olhos.
A partir dos anos 2000, sua obra volta a ter interesse. Imagino que essa nova ascensão da obra de Carolina possa ter acontecido em função da entrada de um governo mais progressista que possibilitou que os movimentos relacionados à população negra passassem a ter mais espaço.
A "Companhia das Letras" é a editora que está republicando os livros de Carolina. A escritora Conceição Evaristo faz parte da comissão que organiza essa republicação, e também a filha de Carolina, Vera Eunice, que é a curadora de sua obra. A comissão deliberou que nada seria corrigido, seria mantido o estilo de escrita de Carolina, inclusive com os erros de português.

Obras publicadas em vida: O Quarto de Despejo; Quarto de Alvenaria (volumes 1 e 2); Pedaços de Fome; Provérbios. 
O Diário de Bitita é uma obra póstuma contendo memórias da infância dela junto com a mãe. Em 1972, Carolina entregou dois cadernos com anotações para a jornalista Clélia Pisa. Em 1982, esse material foi publicado como "O Diário de Bitita", por uma editora francesa. Em 1986, chegou ao Brasil por meio da Editora Nova Fronteira.
Há, ainda, uma biografia, escrita sobre ela, de autoria de Tom Farias.

Curiosidades:

- Carolina tinha grande admiração pelo político Brizola, quando ele era governador do Rio Grande do Sul. Brizola convidou-a para conhecer uma favela do Rio Grande do Sul que ele havia transformado e que ele tinha como projeto piloto para as demais favelas. E ela encantou-se pelo político. Na questão política, Carolina tinha a concepção de que o político bom seria aquele que resolvesse os problemas mais gritantes do povo, como a fome e a falta de serviços básicos na favela. Ela dizia que o Brasil deveria ser governado por alguém que já tivesse passado fome.

- Carolina encontrou-se com Clarice Lispector. Ela, em um encontro de editoras, apresentou Clarice para a filha dizendo: filha, aqui eis uma escritora de verdade. E Clarice responde que escritora de verdade era Carolina, pois ela sim lidava com a realidade, enquanto que ela própria lidava com ficção.

- Houve um pequeno atrito com Jorge Amado. Em um encontro de escritores, ela entendeu que estavam dando a Jorge Amado mais atenção que a ela. Ela, então, fez uma crítica pública sobre ele, o que gerou um mal-estar para todos. Mas depois tudo se resolveu, e foi esclarecido que o problema não era Jorge Amado, mas sim algumas editoras que, ao recepcioná-los, não tiveram o cuidado necessário com essa questão.

Luciana G. Rugani

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