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CORDEL: O RIO DOCE QUE FICOU AMARGO - Fernando Naxcimento

por Luciana G. Rugani - Hoje tenho o prazer de divulgar o cordel do amigo artista plástico e poeta Fernando Naxcimento.
Em tempos de tantas tragédias, consequências da atividade mineradora exercida de maneira gananciosa e, pelo que nos parece, sem preocupação com maiores investimentos na preservação da segurança nas minas, Fernando expressa, neste cordel sobre a tragédia ocorrida em Mariana, toda a dor deste fato e sua repercussão destruidora na cidadezinha e também no meio ambiente, em especial no Rio Doce.
Vale a pena ler, conhecer e divulgar, para que sua poesia viaje o mundo e, quem sabe, ajude a despertar consciências para a realidade de que explorar até a exaustão, sem limites e sem ter empatia com a terra e com a sociedade ao redor, é a maior burrice que se pode cometer:



O RIO DOCE QUE FICOU AMARGO


Mais de 1000 dias do ocorrido em Mariana. Em seguida, Brumadinho... e agora, Caetés. E Depois??? 

Lá pros lados de Mariana
(aquela dos olhos brejeiros),
das montanhas alterosas
o rio seguia doce
e a gente nem percebia...

Mas um belo de um belo dia,
a VALE-tudo chegou,
e com ela dona SAMARCO
e sua tia Biliton.

E as campinas verdejantes
um mar de lama viraram – 
um grande, um imenso charco
guardado por barreiras sólidas, 
altaneiras, seguras...

Mas é dura a realidade, é dura,
que aqui nessa triste Pátria Amada
o money é sempre bem curto
pras coisas da proteção.

Pro bem geral da nação
& dos gulosos empresários 
carece poupar a grana:

Pra que isso de segurança,
pra que instalar sirene,
pra que prestar a atenção
nos malfeitos da barragem
e no perigo pra gente boa 
lá pros lados de Mariana?

(E não havia ninguém,
nem vigia, nem técnico à-toa, 
nem viv’alma caridosa 
pra enfiar o dedinho 
no primeiro buraquinho
da barragem assassina!)

Ó tristeza imensa, ó dura sina
que vergonha nacional!... 
O Rio Doce acabou 
e a peixarada foi-se’mbora
dessa pra outra melhor.

Porque afinal, gente boa, 
o que são mais 100 aninhos
pra consertar tal desgraceira,
pra dar jeito na ecologia
e em tamanha, tamanha dor?

... E o Governo vira Pilatos,
e a SAMARCO tapa os olhos,
e o dono da VALE torce as mãos
e o CEO das Austrálias leva, apressado, 
o lenço de flores bordado 
ao seu sensível nariz.

“Não há culpados,” um fala,
“é coisa pouca,” outro diz,
“o Governo vai dar um jeito!”, inda outro exclama,
“Foi só meia-dúzia de afogados, ‘tadinhos!, 
sufocados pela lama...”

“- Dá um pouquinho de pena,
Mas nessa santa terrinha, prezados sócios,
tudo acaba em festança, 
pizza & chopeidança!” 

Vai ser sindicância pra cá, inspeção pra lá 
e muito, muito muito blá - blá - blá...
Mas não vai ter responsável e nem prisão
que a gente vai se safar numa boa,
e logo logo o povo esquece
dessa infeliz merdança!”

Ai QUE até que É BOM, 
É BOM mesmo é bom DEMAIS!!!, 
aplaudem de pé, aliviados,
Diretoria e acionistas & as autoridades locais...

E os políticos da Região logo exclamam
– que isso é coisa pequena
pronta pra ser esquecida – 
e aquela gente sofrida
já vai parar de reclamar.
E com alguma grana passada
a gente esconde a cena!

E o feliz empresário proclama,
pra fechar a reunião: 
“- Ora, ora, minha gente, é pequena a chateação
que só vai atrapalhar um pouquinho a nossa gente 
e os que mandam na nação.

*** 
Óia... Agora, agora, babou:
a água-vida sumiu, 
a peixarada já era, 
a fauna virou quimera 
e a flora, deflorada, tadinha, 
de tanto e de tão arrasadinha
enfim se foi, se finou...

Não há mais gente, vê só!,
não há mais nadica de nada. 
Não há mais som, nem luz, nem cor
e nem ar nem gente & nem vida:

Só mortandade absurda
e 19 campas obscuras,
um oco em Bento Rodrigues,
só há revolta inútil, só vozes não ouvidas,
só uma imensa ferida...

Agora, boa gente, gente boa,
é só esperar pela próxima
desgraceira anunciada
em outra barragem qualquer, outra campina...

Onde vai ser, eu não sei:
Caetés, Catas Altas, Cocais, 
Ibirité, Itabira, ou Brumadinho,
e tudo vai sumir de novo,
num podre redemoinho

(que daqui pra frente, boa gente
outro povaréu vai se danar,
vai sofrer a mesma sina 
e levar a breca, com certeza.)

Então, vai ser uma beleza!...
Mais mortandade geral,
de gente, planta e animal.

Ói, gente boa, e de sobremesa,
mais explicação safada
mais história pra boi dormir,
pra pura enrolação, por pura hipocrisia,
que esse é o triste destino
pra gente trabalhadora
que labuta no dia-a-dia:

Desculpas esfarrapadas,
promessas pra não cumprir,
reparos de meia-sola
numa cantilena carola
num blá - blá - blá sem fim
pr’aquela gente sofrida 
mais uma vez iludir.

Pode esperar, ouvinte meu,
pela nova cantoria
dos poderosos chefões
que do povo que luta e sangra 
são nada mais do que cafetões...

São sereias carcomidas
que não dão um tostão pelas vidas
e só pro forma se rebaixam
pra explicar o que não tem
mais nenhuma explicação.

Pra gente de Mariana,
não tem nada de SIM, 
só sabem dizer NÃO... 

Meu caro, querido ouvinte,
naquele triste cantinho
só dá garganta gretada,
só veneno & peixe podre,
e um rio preto de lama,
e um mar marrom envenenado,
e a terra toda arrasada,
e o povo triste, infeliz... 

E a mídia inútil, safada,
omissa, ausente, comprada,
óia só, gente boa, meus irmãos,
pouco fala, pouco diz! 

Ah, gente boa, é mesmo de dar dó...
Agora, naquelas bandas é horror e mais horror,
o povo ao Deus-dará & na miséria,
a população na penúria, uma tristeza infinita,
vivendo de caridade e de favor... 

É entulho e muito lixo, 
e é morte e muita lama, 
e um miasma fétido que emana
da amargura & do choro,
e do desabrigo e da dor...

...agora
só a lama podre comanda 
lá pros lados de Mariana.

Comentários

  1. Luciana, grato por ter postado em seu "Cantinho das ideias" esse meu cordel. Essa foi a forma de expressar minha indignação, revolta, desesperança, horror e incredulidade com relação às tragédias anunciadas que foram Mariana e, em seguida, Brumadinho e Caetés. Sua iniciativa de acolher esse meu texto só comprova, mais uma vez, que você está antenada para os grandes problemas que afligem o nosso Brasil. Novamente, obrigado e parabéns pelo belíssimo trabalho seu em prol da Cultura Cabofriense e da nossa Região dos Lagos.

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