Hoje, no Blog do Totonho, falo sobre um dos mais diversos pontos abordados por ocasião da leitura do texto "Felicidade Clandestina", na última terça-feira:
Na última terça-feira (7), aconteceu a 3ª edição do projeto "Leituras no MART - Memória", organizado pelo Círculo de Leitura da Sophia Editora, em Cabo Frio. O conto dessa edição foi "Felicidade Clandestina", de Clarice Lispector, publicado originalmente em 1971.
Após a leitura do texto, um rico debate se formou e foram levantados vários pontos e várias visões interessantes. Dentre os pontos levantados, falamos sobre a questão do desejo.
Entre os diversos aspectos debatidos sobre o desejo, considero urgente uma reflexão sobre o quanto a captação do desejo tornou-se, hoje em dia, o foco da indústria e de grandes empresas comerciais. Sempre em nome do lucro cada vez maior, da ânsia de lucro a qualquer custo, quando questões como ética, humanização e responsabilidade social são deixadas de lado, podemos dizer que o marketing agressivo de grandes empresas capitalistas acaba por impor desejos às pessoas.
A obsolescência programada, prática da qual não escapa mais nenhum produto e da qual, que eu me lembre, a televisão foi um dos últimos aparelhos domésticos a ser por ela abraçado, determina o prazo de vida útil dos produtos de maneira que, se o consumidor não adquirir uma versão mais atualizada, o produto acaba perdendo recursos cada vez mais utilizados. Percebemos isso muito claramente em relação aos aparelhos celulares.
Para além desse aspecto funcional, há também o aspecto mais perverso, e, ao mesmo tempo, mais possível de a ele não nos submetermos, caso tenhamos força de vontade e discernimento, que é o foco no aspecto psicológico. Quando propagandas intensivas conclamam vinte e quatro horas por dia o consumo de algum produto e fazem conexões com questões como aceitação social, prestígio e sucesso. Esse é o foco que mais atrai as grandes corporações e daí vem o tamanho interesse que elas possuem nos dados pessoais dos consumidores para, assim, ser traçado um perfil de consumo cada vez mais fiel às preferências do consumidor e mais capaz de "pescar" definitivamente o seu desejo, principalmente os consumidores mais vulneráveis, como crianças, adolescentes e também adultos que acabam se perdendo na vaidade das ilusões consumistas. E um questionamento que fiz durante o estudo: as crianças de hoje, quando submetidas a essa captação intensa do desejo, marca de uma sociedade capitalista cada vez mais apartada da ética e da responsabilidade social, que impõe as mesmas necessidades tanto aos que detém como aos que não detém condições de compra, essas crianças por acaso teriam como sentir a tal "felicidade clandestina" citada no texto, com aquele gostinho de querer guardar e cuidar do objeto adquirido, ou aquela sensação de satisfação pessoal plena em relação a algo que tanto queria?
Em um debate sobre o desejo, uma filosofia que não poderia faltar na discussão e que também foi trazida à baila, foi o ensinamento do Buda, um dos grandes mestres da humanidade, de que o desejo está na raiz de todo sofrimento humano, pois leva ao apego a pessoas e coisas e, consequentemente, quando não conseguimos controlá-lo, à dor. O Budismo é um dos caminhos que muito nos auxiliam na obtenção do autocontrole para que possamos ter a força de vontade e o discernimento, aos quais me referi no início do texto. A única maneira de sermos realmente livres e donos de nossa vontade é aprendermos a estarmos alertas, a termos a atenção plena para que não nos deixemos levar pela estratégia mais perversa do consumismo e que não permitamos que nossas necessidades sejam controladas e impostas pela sociedade do capital, e que eduquemos nossas crianças nesse caminho.
O Budismo nos ensina que não se trata de simplesmente negar o desejo, mas sim de caminhar o "Caminho Óctuplo", ou seja, de cultivar, constantemente, um treinamento para erradicar a ganância, o ódio e a ilusão, que estão ligados ao desejo como raízes do sofrimento humano. Buscar seguir os oitos passos: 1) Compreensão Correta; 2)Pensamento Correto; 3) Fala Correta; 4) Ação Correta; 5) Meio de Vida Correto; 6) Esforço Correto; 7) Atenção Correta e 8) Concentração Correta. Cada um desses passos envolvem princípios que nunca deveriam ser abandonados em nossa vivência, como a ética, a empatia, a responsabilidade como aptidão humana, entre outros.
A verdadeira liberdade envolve não ser escravo de desejos, de ilusões e de imposições sociais. Para que não nos deixemos levar pela ferrenha estratégia de marketing consumista dos dias atuais, é preciso ter atenção plena, constante, para o que de fato é real e o que representa apenas uma ilusão. Saber que nossos valores não devem ser medidos por aquilo que dizem serem valores da sociedade. Não é a moda, ou a adequação ao estilo social marcado pelas mesmas músicas, ou as mesmas roupas, ou os mesmos lugares a frequentar, enfim, não há nada exterior que seja capaz de medir o nosso próprio valor. Não sermos escravos de nosso desejo é sabermos que ele é natural da essência humana, mas que não deve ser ele quem nos controla.
Enfrentar a sanha consumista só será possível com a urgente educação de nós mesmos e das novas gerações no sentido de buscarmos a formação de uma consciência alerta, e com a adoção de um modo de vida em constante busca pela presença de princípios éticos.
Luciana G. Rugani
Pensadora, escritora e poeta
A cultura do consumo realmente tem a ideia de que a felicidade está no material e a realidade é que ela mora dentro de nós e nas pequenas coisas que o dinheiro não compra
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