Hoje, no Blog do Totonho, reflexões que fiz por ocasição da última edição do ano do Círculo de Leitura no Museu de Arte Religiosa e Tradicional - MART, em Cabo Frio:
No dia 4 passado, aconteceu a última edição do ano do projeto "Leituras no MART - Memória", organizado pelo Círculo de Leitura da Sophia Editora, aqui em Cabo Frio. O conto, objeto de leitura e de debate da noite, foi "Aspino e o Boi", da escritora quilombola Gessiane Nazário. Gessiane é quilombola da Rasa, em Armação dos Búzios, e autora do livro "Revolta do Cachimbo". O conto "Aspino e o Boi" constitui o primeiro livro infantil da autora, porém é uma história real de seu avô Aspino e seu conteúdo interessa também a adultos.
Os acontecimentos pós-escravização, registrados nas obras de Gessiane, são relevantes e reveladores de muitos porquês e de uma realidade muitas vezes esquecida e escondida "embaixo do tapete". A autora, ao realizar a difícil tarefa de relembrar situações de sofrimento, exploração e humilhação de seus ancestrais, acaba por ressignificá-las como história e memórias que merecem e precisam ser lembradas por gerações futuras. São histórias que, muito além de explicarem costumes sociais, provocam reflexões e paralelos importantes entre passado e presente.
Conhecer mais a fundo o período pós-escravização me fez refletir que, infelizmente, a escravização não se constitui apenas de fatos concretos e passados, mas vai muito além disso. Ela não acabou no dia seguinte à assinatura da Lei Áurea, mas permaneceu presente e oculta por máscaras de outras formas de exploração. Vejo-a como um "modus operandi exploratório" que apenas sofisticou a escravização. E aí reside a importância crucial de ler, conhecer e analisar a história em face de situações atuais. Logo após a libertação dos escravizados, esses tiveram que se submeter a situações degradantes e a uma luta constante para, simplesmente, sobreviverem. Os antigos senhores, ávidos por mais e mais terras, impunham condições duríssimas para que os recém-libertos pudessem seguir vivendo naquelas terras, condições muitas vezes sobre-humanas e quase impossíveis de serem cumpridas seguidamente. Daí surgiram inúmeros conflitos, lutas e expulsões. Os recém-libertos eram proibidos de frequentar alguns locais e sofriam toda sorte de preconceitos.
Quando vemos, na atualidade, situações que seguem perpetuando o tratamento indigno para com a parcela pobre da população, ou a propagação de ideias que sugerem extinção de direitos sociais sob a máscara de um falso "empreendedorismo", ou até mesmo o uso da pobreza como meio de obter louros políticos, percebemos que ainda segue viva a semente da exploração, a ideia da subjugação e dominação do outro. Infelizmente, percebemos que, se houvesse hoje uma lei de retrocesso, permitindo a escravização da forma como acontecia antes, muitos abraçariam de cara a proposta e a defenderiam com argumentos construídos com termos modernos e, o que é pior, conseguiriam convencer certa parte da sociedade, essa mesma parte que hoje se deixa levar por informações propagadas de maneira rasa e fora de contexto.
Infelizmente, a ideia de exploração segue viva a ameaçar conquistas obtidas e direitos instituídos e conta, a seu favor, com uma parcela da sociedade que abdicou completamente de uma consciência social crítica e optou por apenas reagir raivosamente e deixar-se levar pela parcela de desinformação das redes sociais. E esse panorama, ao qual adiciona-se o medo e o caos semeado pelo extremismo dominador, é o cenário perfeito para que a escravização moderna siga se fortalecendo.
Entretanto, essa luta não é de hoje, como revela nossa história. É muito antiga e, certamente, existe desde que existe o ser humano. A evolução humana é lenta e faz-se por meio de avanços e retrocessos. Por isso, todo trabalho que permite um maior alargamento e aprofundamento da consciência crítica é bem-vindo e muito relevante. A sociedade precisa seguir atenta às transformações de capa que escondem no conteúdo o gérmen da exploração do outro, o gérmen da indignidade e da subjugação, e, para isso, é essencial sair da reação e partir para a ação, tomar as rédeas de sua consciência, buscar esclarecimentos e análises de contextos, e abdicar da dominação intelectual, a mais sutil das dominações em tempos de tanta desinformação.
Luciana G. Rugani
Pensadora, escritora e poeta

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